Apenas para eternizar publico aqui um conto que fiz para o término da disciplina de Literatura Japonesa no segundo semestre do ano passado. Trata-se de um conto longo que impresso daria 15 paginas (Muita coisa), mas, caso alguém se interesse, o conto tem como palco a Cracolândia.
Órbita da Repressão
1
“Crack!”. E os cacos da caneca caída estraçalharam-se no chão. Açucena percebeu que seu braço também empurrara um livro que esperava pela devida coragem para ser lido, e em breve completar mais alguma análise, de algum trabalho da graduação; porém, o conteúdo do site na tela do computador era suficiente para fazê-la ignorar as gotas de café que agora coloriam seu jeans e esquentavam a sua perna.
“A Polícia Militar de São Paulo auxiliou na manhã desta terça-feira o cumprimento de um mandado judicial para a reintegração de posse de um prédio abandonado na avenida Ipiranga, na região central de São Paulo. O imóvel, que fica no número 000 da avenida, é ocupado por 130 famílias ligadas à Frente de Luta por Habitação (FLH).”.
Os cacos, disformes, acomodaram-se em meio a uma pequena formação, uma poça marrom, cheia de pequenas veias que se aproximavam lentamente do livro estrebuchado. O texto da tela do computador continuava a correr.
(...) a questão da moradia não é de competência da polícia e a reintegração seria feita da forma mais pacífica possível. ‘A PM apoia uma ordem judicial, viemos fazer de forma pacífica e ordeira. Não cabe à PM resolver o problema de abrigo’, disse.”. A estimativa é de que, das 130 famílias, 94 não tenham para onde ir. Para evitar o confronto, representantes dos sem-teto fizeram assembleias para discutir a desocupação. Às 9h50, o prédio começou a ser evacuado pacificamente.”.
O relógio no canto esquerdo da tela dizia ser vinte para as seis.
- Daqui a pouco preciso ir para a faculdade. Balbuciou. Cacete! Esqueci de ligar para o cliente!
Açucena trabalhava em Home Office, a experiência como vendedora em uma empresa importadora de produtos de informática lhe garantira uma clientela fiel, e mesmo em sua casa, conseguia passar os dias entre ler rapidamente algo necessário para a faculdade enquanto cuidava de sua sobrevivência.
- Sobrevivência. Pegou o telefone e discou o número da loja de seu cliente.
Nascera na Boca do Lixo, um lugar famoso pela cidade e também conhecido como “Crackolândia”, e enquanto o som do outro lado indicava uma linha ocupada, lembrou-se do corpo daquele homem estrebuchado no chão. Estava na segunda-série e durante aquela fatídica manhã, seu pai novamente a levava junto com seu irmão para a escola que ficava a cinco quarteirões de sua antiga residência. Parou diante daquela imagem, um homem, negro, adulto, jogado no chão. Olhos revirados, pernas entrecruzadas, braços estirados, um para cima da cabeça e outro para baixo. Em meio à barriga, um furinho, de onde saía uma poça...
- Uma poça! Desligou o telefone e condicionadamente retirou o livro do chão. A página 171 ficaria para sempre marcada pelo sangue daquele homem, ao menos enquanto não estivesse novamente na estante da biblioteca esperando por um leitor que fatalmente condenaria o desleixo do antigo portador, que com total descaso ao livro, permitira que se manchasse de café.
Quinze para as seis. Acendeu um cigarro e com o celular novamente em mãos, discou o número de um amigo, companheiro, que a ajudava nas pequenas empreitadas utópicas de salvamento do mundo.
- Oi Açucena!
- Oi Davi, tudo bem?
- Hoje fui na Avenida Ipiranga, com a câmera de vídeo tentando gravar qualquer incidente na Reintegração de Posse. Peguei umas imagens com os moradores da ocupação para o nosso vídeo, mas tive que ir embora porque estava no horário de almoço. Inferno de emprego ingrato de revisor! Não posso nem trabalhar em paz.
- Vai ser assim enquanto você precisar comer. Sinto te informar.
- Eu sei... Mas e você?
- Eu acabei de destruir uma caneca. Mas enquanto isso eu li sobre a Ocupação. A notícia diz que ao menos 94 famílias não tem destino certo. Não quero pensar...
- O céu é um teto democrático.
- O teto dos tetos dominados por poucos.
- To indo pra facul, você vai?
- Não sei, talvez eu fique em casa, preciso ler umas coisas pra entregar uma resenha amanhã. Também não quero ter que fingir que neste momento não há pessoas acampadas no meio da rua esperando por uma solução da prefeitura.
- Entendo, a gente se vê amanhã então?
- Sim, amanhã vamos andar pela Crackolândia para tomar o depoimento dos moradores de rua. Conseguiu gravar o vídeo com o representante daquela ordem de advogados?
- Consegui e ficou ótimo. Obviamente ele considera a ação da polícia na Crackolândia um absurdo.
- Ótimo, então teremos mais material ainda.
- Sim, beleza, então nos vemos amanhã, se cuida!
- Beleza. Até amanhã!
Apagou o cigarro e abriu o livro. A mancha de café a assombrava e a fazia lembrar-se daquele homem no chão. Fechou o livro. Amanhã seria um dia duro, previa. Lidar com todas as histórias que viriam pela frente não seria tarefa fácil. Mas agora, como naquela música alguém precisava representá-los. Voltou-se novamente para a tela do computador, Windows Media Player, Gabriel o Pensador Acústico MTV, Resto do Mundo. Colocou os fones e ouviu a canção enquanto tentava acompanhar a letra:
“Eu queria morar numa favela, o meu sonho é morar numa favela (...). Eu me chamo de excluído como alguém me chamou (...). Eu gostaria de ter um pingo de orgulho, mas isso é impossível pra quem come entulho, misturado com os ratos e com as baratas e com o papel higiênico usado nas latas de lixo (...). Tenho que me rebaixar a esse ponto porque a necessidade é maior do que a moral (...). Pro rico e pro turista eu sou poluição, sei que sou um brasileiro, mas eu não sou cidadão (...). Eu sou o resto do mundo, mendigo, indigente, indigesto, vagabundo (...). Eu sei que a maioria do Brasil é pobre, mas eu não chego a ser pobre, eu sou podre. (...). Então que culpa eu terei, quando eu me revoltar, quebrar, queimar, matar, não tenho nada a perder, meu dia vai chegar... Será que vai chegar? Por enquanto eu sou o resto, o resto do mundo (...) Não sou consultado, registrado, batizado, não sou filho do senhor, não sou comemorado, não sou considerado, não sou empregado, não sou consumidor, não sou representado por ninguém, não sou apresentado pra ninguém, não sou convidado de ninguém, não posso ser visitado por ninguém (...). Por que eu nasci? Por que eu to aqui? Um penetra nesse inferno sem lugar pra fugir.”.
Sonho. Açucena ponderou sobre os próprios. Quais seriam? O que a sua vida lhe permitira sonhar? Uma boa faculdade, um emprego estável como resultado do esforço, uma família, talvez? Filhos, viver feliz para sempre? Uma vida tranquila. Sua amiga queria viajar o mundo, não era necessário. Seria possível ter uma vida tranquila enquanto pessoas tinham como sonho a possibilidade de morar numa favela? O que uma favela garantiria? Ao menos garantiria que a polícia não os retirasse de suas casas, atrapalhando a rotina de escola dos filhos, de trabalho... Ao menos não seriam forçados a irem para a rua. Mas a polícia desintegrou Pinheirinho, nem mesmo as “favelas” ignoradas e já organizadas, estão salvas do poder do estado; caso apareça algum magnata interessado, qualquer canto deixa de ser canto para ocupar os interesses dominantes. Como a figueira de “Bones”, que seria cortada, ainda que abrigasse os espíritos dos mortos da Batalha de Okinawa. Nem mesmo os espíritos são respeitados diante do progresso, da modernização e da perpetuação do poder na mão de poucos. Quantos espíritos rondavam as ruas do centro da cidade de São Paulo? De qual lugar teriam se apossado? Em meio à selva de pedra não há figueiras, se houver, devem ficar bem escondidas. As colunas dos prédios parecem ser um bom ponto de sustentação. Ao menos possuem uma vida mais garantida do que a vida de uma árvore.
“O meu sonho é morar numa favela”.
A música terminou. Açucena decidiu tomar banho para poder despertar e encarar o trabalho da faculdade que viria, pois fatalmente adentraria a madrugada e quiçá acompanharia o nascer do sol. Levantou-se.
- Puta que o pariu! Caralho! Esquecera-se de que estava descalça. Um dos cacos fincou-lhe o pé e uma dor fina subiu-lhe o cérebro.
- Aaaaaaaaaaaa! Inferno!
Agora, o rastro da veia que sucumbira após ser absorvida pela folha do livro, tornara-se companheira das pequenas gotas de sangue do pé de Açucena. Ao menos não mata. A vida não existe, se existe para alguém está amaldiçoada pelo sangue de outrem, como pagamento pelo privilégio. Drummond e a morte do leiteiro, que carregava leite bom para gente ruim. O sangue, o leite, a aurora. O tiro que deveria matar o gatuno, mas que matou o nosso irmão. Ocorreria o mesmo hoje? O nascer do sol, que viria acompanhar um trabalho incompleto pelos devaneios que roubavam a atenção de Açucena. Ao se dar conta do que a esperava, puxou de uma vez só, o maior caco que se formara justamente para adentrar o seu pé. Com os olhos lacrimejados, pela dor, retirou a toalha do encosto da cadeira diante da notícia e foi tomar banho.
2
- O negócio é... É como um remédio. Faltou, a galera fica mais nervosa. Isso acontece comigo. É uma parada que cê vai controlando, a mente e o organismo. Quem tem mais controle da mente, segura mais, mas tem uma hora que o organismo não segura. Aí nessa de repressão e tal; o que mudou, a galera sai mais doida pela rua, rouba mais, quem rouba, fica mais injuriado, briga mais entre si. Pra mim, piorou!”.
- Muito obrigado! Respondeu Davi enquanto guardava a câmera com a qual acabara de filmar uma moradora de rua.
- Esse vídeo vai ficar muito legal, mesmo que acabe nas nossas estantes ou esquecido no youtube. Davi riu do comentário de Açucena.
- Agora vamos Davi. Pegar a Rua dos Andradas, vamos continuar descendo pela Rua Aurora sentido Santa Efigênia e pegar a rua dos Andradas quando ela cruzar. De lá a gente sobe até a General Osório. Com certeza deve ter uma função ali.
- Uma função?
Açucena riu. Lembrara-se instantaneamente do trecho de umas das músicas do Criolo.
- Davi, faz-me rir! Não brinca que você não sabe o que significa função? Tem uma música do Criolo que falaria exatamente para você o que eu penso sobre esse tipo de reação diante de uma gíria. E função nem é uma gíria tão específica.
- Qual o nome da música?
- Mariô do Criolo, assim que chegar em casa eu te mando pelo face, mas ele diz: ‘ Pode crer mais de quinhentos mil manos, pode crer também no dialeto suburbano, pode crer a fé em você que depositamos, e fia, eu odeio explicar gíria!
- Beleza, mas o que significa?
- Função é um aglomerado de pessoas, aqui significa que provavelmente estarão usando drogas.
Ao chegarem à esquina da Rua dos Andradas com a Rua General Osório, depararam-se com um dos prédios da região, uma porta verde, fechada o dia inteiro, prédio comum, residencial. As paredes ao redor da porta acimentadas com pequenos tijolos, lembravam um telhado bem vermelho. Daqueles antigos. Açucena lembrou-se do sangue e do homem, fora exatamente ali que o vira estrebuchado no chão. Davi já seguia em direção à função, sem deixar de conferir se Açucena seguia o seu passo.
- Vamos até aquele rapaz ali na porta. Disse Açucena.
- Olá, beleza, tudo bem? Eu sou Açucena, sou uma cidadã que discorda da ação policial aqui na Crackolândia e por isso decidi com um amigo meu, fazer um vídeo sobre o assunto. Queria saber se você pode dar um depoimento pra gente, sobre a sua opinião a respeito.
- Você vai gravar?
- Pretendo, mas se você quiser posso gravar só a voz e alterar o som, você vai ver que não vamos apontar a câmera pra você, e que não tem como você estar sendo filmado.
- É que eu preciso ir andando, correria.
- Pra quê? Pra comprar droga?
Silêncio.
- Quanto custa?
- Um pedaço pequeno, cinco reais.
- Beleza, você me dá o depoimento e eu te dou cinco reais.
- O que você quer saber?
- Quero saber o que você acha sobre a ação da polícia aqui na Crackolândia. Se te disseram, se tem um lugar pra ficar...
- Nunca falaram nada. O que eles falam é vai nóia, sai fora! Dão umas paulada, umas borrachada...
- Entendi, e se você tivesse um lugar pra se recuperar, você iria?
- Com certeza.
- E se você fosse obrigado a ir, você iria?
- Com certeza que não. Até então nóis tem o livre arbítrio.Você vai se você quer. Que que adianta ó, que nem eu falo pra minha mãe. Ela fala: ‘Ah, vai se internar”. Mas pra quê? Pra mim ficar lá no dia que eu sa... ou, quantos que chega aqui, tavam na clínica, chegam e... Aí já quer fumar. Quer fumar. Tem cara que, os cara da clínica vem buscar aqui. O cara não volta. Eles quer levar uma com nóis, pagar de loco.
- Obrigada.
Davi guardou a câmera, que funcionava como gravador em sua mochila, após ter observado a cena em silêncio. Açucena retirou do bolso uma nota de cinco reais e entregou na mão do morador.
- Sai dessa, mano.
- Eu vou sair um dia.
Davi não entendeu como Açucena tivera coragem de entregar o dinheiro para o morador de rua comprar drogas. No entanto, na volta para a casa considerou as palavras de Açucena – Melhor dar o dinheiro, do que deixar ele roubar alguém, podendo prejudicar a outros e a si mesmo, ou fazer qualquer outra coisa pra conseguir droga. Além do mais, você realmente deveria ouvir Criolo, ele responde a todos os questionamentos que você me apresenta com as letras dele. Grava aí mais uma música, essa é fácil, se chama ‘Sucrilhos’, essa eu não vou dizer, se você quiser, ouça. Em frente ao seu computador, editando o vídeo, Davi decidiu ouvir a música recomendada por Açucena; no terceiro refrão já acompanhava: “Pode colar, mas sem arrastar, se arrastar a favela vai cobrar”. No entanto, Açucena também dissera que o que a fez dar o dinheiro foi a ciência de que ao menos aquela vez, ele não iria roubar. Ela, não tinha medo das reações daqueles moradores, estava acostumada, crescera ali.
De toda a experiência do dia o que mais impressionava Davi, era o fato de aquelas pessoas não quererem se identificar nunca. Apesar disso, eram receptivas, espontâneas, falavam sobre suas vidas sem nenhuma inibição. Uma das histórias chamara sua atenção, foi a de um morador que dormia em frente à Sala São Paulo, aonde já se instalara uma base policial. O mendigo desistira do sonho que carregava ao vir para São Paulo. Deixara sua mãe, pai e irmãos em busca de uma vida melhor para si e para os demais familiares. Viera ainda jovem, aos 22 anos. Aqui, porém, não pode concretizar o sonho. A vida dura, de um nordestino em São Paulo com a quarta série de primeiro grau, lhe tirara o ânimo de viver. – As negatividade da vida. Dissera. Trabalhara como pintor de diversos edifícios, contara sobre suas peripécias ao subir nos andaimes, neste momento pareceu se animar um pouco, também trabalhara como vendedor de churrasquinho na esquina da Rua dos Andradas, no cruzamento com a Rua Aurora – Enchia de gente das lojas de informática. Antes disso, vendera churros na esquina da Rua dos Timbiras com a Rua Santa Efigênia – Esse era durante o dia, então eram as pessoas que passavam mesmo. Sofrera um acidente que o deixara manco de uma perna, trabalhara como cafetão para conseguir comprar um apartamento e criar três filhos que tivera depois de se amalgamar com uma ex-prostituta, vadia, puta, vagaba, meretriz, mulher da vida ou vaca, o leitor pode escolher o adjetivo de acordo com a sua preferência. Manco de uma perna não havia quem lhe contratasse. - Se vira irmão, o mundo é assim. Criara os filhos, mas acabara ali, não quis contar os detalhes emocionais que o levara até aquela situação. Davi ficou imaginando qual seria o motivo que o levou até ali.
Cláudio, um amigo da faculdade de Davi chegara.
- Cara o que você acha que leva uma pessoa a optar por desistir da vida e se acabar em drogas na rua. Um verdadeiro suicídio gradativo por meio do crack? Ponderou.
- Hoje eu vi pessoas que se acabam com as drogas e outras que simplesmente não querem mais viver, e vegetam.
- Sei lá cara. Bora pro Bar Drahma, espairecer.
- Já estive pelo centro hoje. Vou passar. Respondeu Davi.
3
Três latas de cerveja, duas tequilas, e Davi começava a sentir-se mais a vontade na mesa do bar. Decidiu aceitar o convite de Cláudio. Não que fosse tímido, sabia se comunicar, mas não tinha muita habilidade em conversar com pessoas estranhas e que apesar de receptivas, como geralmente as pessoas se portam em ambientes de encontro, não passavam de conhecidos do trabalho de Cláudio, ou seja, estranhos que ficariam marcados como sombras em volta das lembranças de Davi sobre o dia em que fora ao centro duas vezes, em um futuro certo, mas não vindo. Nada significante sairia dali, mas já que quando duas pessoas, ou mais, estão sem fazer nada, não custa bater um papo gostoso, acompanhemos Davi e os lapsos que permanecerão em sua mente.
- Não, muito folgada! Não fui mesmo, o que ela pensa? Eu fui contratado pra uma determinada função e não sou obrigado a acatar ordens de quem acha que manda ou sabe alguma coisa.
-Nossa, nem me fale! Olha, se eu não fosse obrigada a trabalhar...
Davi não teve paciência, olhou o relógio, oito e meia. Estava na parte externa do bar, e seus olhos podiam admirar a brisa da noite de primavera da cidade. A lua estava cheia, era possível enxergá-la do lugar em que se acomodaram. Ainda bem que não colocara nenhuma aula em sua grade às quintas-feiras. Ao menos uma folga. Cláudio, na quinta tequila pós algumas latinhas, não se sabe bem ao certo quantas, percebeu o amigo introspectivo daquela noite.
- E aí cara, ta tudo certo?
- Sim, tudo certo, estou apenas pensando nas dimensões que comportam a dinâmica da cidade.
- Quê?
- Sim, estamos aqui, agora, no bar, aproveitando um momento agradável entre pessoas agradáveis.
Aquele carro acabou de passar, no cruzamento da Avenida Ipiranga com a Avenida São João, quem será que está dentro dele? Que história deve ter? Será que tem filhos? Mesmo aqui, entre os conhecidos, como será a vida de cada um? A sua realidade, cotidiano, de onde vieram? O garçom, onde será que vive? De onde será que vem? Quanto tempo será que leva para chegar todos os dias ao seu trabalho para servir-nos com simpatia e gentileza? Será que está satisfeito com o que faz e com as possibilidades que o seu emprego lhe proporciona? Será que recebe o justo? Isto, nada, e dentro deste campo de visão. Como estarão os demais bairros da cidade? Os cinemas, shoppings, teatros, os metrôs! Quem estará no metrô neste momento? Será que este alguém poderia vir até aqui tomar uma cerveja conosco? Os motoristas dos ônibus, o que será que está passando na cabeça de um motorista neste momento, em Pirituba? Com certeza há um motorista de ônibus ali agora. O que será que se passa em uma Praça na Cidade Tiradentes?
- Cidade Tiradentes? É São Paulo?
- Sim, pois é, estamos pensando em São Paulo, poderíamos fazer as mesmas perguntas, sobre mais e diversas situações, sobre as cidades do Estado, do País e do mundo. E tudo acontecendo agora, você consegue mensurar tudo o que está acontecendo neste momento, no mundo, consegue imaginar desde uma pessoa que está na sua casa agora, assistindo à novela, no Brasil, ao lixeiro que está varrendo a rua aqui no cruzamento Ipiranga São João, aos amigos que estão tendo aula na faculdade, consegue pensar nas pessoas que estão acordando no Japão, ou nas que dormem na Alemanha, ou mesmo nas que estão vivendo no nosso país, a vida, com uma hora a menos que a gente, neste exato momento?
- Estou acompanhando o seu raciocínio, mas preciso confessar que o que eu to pensando agora é que preciso fazer xixi.
Davi sorriu. Enquanto Cláudio se levantava, pegou o celular do bolso e enviou um sms para Açucena, confirmando hora e local para a continuidade do trabalho dali dois dias. Precisavam de mais depoimentos.
Sentia-se contente, de uma maneira estranha percebera que o mundo é coberto por diferentes órbitas, talvez um número matemático qualquer pudesse dar conta, mas Davi não saberia dizer qual, na condição de estudante de Letras, porém, na verdade, pelas suas próprias aptidões. Concluiu que deveria ser muita coisa. Entretanto, dividindo espaço com seu ânimo, o desânimo martelava e atormentava o pensamento todas as vezes que se recordava da órbita daqueles moradores de rua com os quais tivera contato. Estava ansioso pelo o que viria pela frente.
4
- Você é a favor da ação da polícia aqui?
- Não.
- Por quê?
- Porque eles chegam... Eles chegam batendo.
- Eles já ofereceram ajuda? Algum lugar?
- Não, chegam só batendo.
- Quê que cê fazia antes de entrar no crack? Perguntou Davi.
- Eu trabalho, eu trabalho. Chega fim de semana eu venho aqui, aqui é o meu lugar. Agora, acabou aqui, eu não tenho lugar mais não.
- Entendi. Respondeu Açucena.
- Não filma meu rosto não hein?
- Não, eu sei, fica tranquilo. Muito obrigada por responder as perguntas.
Açucena continuou observando um grupo na praça ao lado, camisetas iguais, em ciranda, baterem palmas. Imitou-os, enquanto se aproximava da roda. Davi a seguiu.
- Eu fiz capoeira no Instituto Jom Bosco.
Davi começou a imitá-la.
- Você está fazendo isso errado. São três batidas de palmas, uma seguida da outra e não quatro. De qualquer modo, está evoluindo, conseguiu até fazer uma pergunta direta para o morador de rua.
Davi se auto corrigiu.
Ao redor, um rapaz ao lado do homem que tocava berimbau, adentrou ao centro do círculo com uma gaiola que continha um tucano azul dentro, ficcional, obviamente. Todos riram. E Açucena continuou a acompanhar a canção em sua mente. “Foi, foi no clarão da lua, que eu vi acontecer, no vale tudo com jiu-jítsu, o capoeira vencer”. Sentou ao lado de uma das pessoas que sentava à roda e continuou a recordar-se do tempo em que, todos os períodos da manhã da semana oficial, eram preenchidos pelas atividades fornecidas pelo instituto. Aprendera a fazer barra de pano de prato em crochê e a bordar, estas aulas aconteciam uma vez na semana, e todos os outros dias eram preenchidos por atividades de recreação distintas. Uma hora e meia de reforço escolar, os profissionais educadores auxiliavam em qualquer dificuldade nas atividades escolares oficiais, ou aplicavam atividades próprias, seguidas de uma hora e meia de recreação. Açucena adorava as sextas-feiras, aquele ano em sua turma, caíra a capoeira. Os outros dias também eram interessantes. Dois, sempre seriam dedicados à atividade física, com profissionais, que orientavam os alunos sobre as regras de jogos como vôlei, futebol e basquete, estudavam-nas e entendiam o funcionamento. Açucena não se lembrava de metade daquelas regras, mas fora interessante entender na época. Organizavam gincanas entre turmas, concorridas por queimadas e até mesmo por jogos aprendidos e ensinados curiosamente, como kickball. O dia que sobrava era preenchido por uma atividade intimista, dentro de sala de aula, os alunos se deitavam em tatames e ouviam música, músicas da natureza, todas às vezes, conversavam sobre temas triviais, assistiam a pequenos filmes, dialogavam e por fim refletiam. No entanto, a atividade que mais interessava Açucena, depois da capoeira, era marcenaria. Possuíam um local com maquinários pesados, e materiais de segurança suficientes, em que os alunos podiam cortar a madeira e lixar moldando seus próprios objetos, geralmente carrinhos. Mas esta atividade era oferecida apenas no mesmo dia das aulas de crochê das turmas, e Açucena seguia com as demais garotas para a sala de artesanato. Além disso, inventavam músicas e trava-línguas, cantados nas filas que antecediam os momentos do café da manhã e do almoço. À tarde, Açucena seguia um quarteirão e meio até à Avenida Tiradentes e entrava em sua escola com seu irmão.
“Dona Janaína dos cabelo loro, dos cabelo loro-loro, dos cabelo loro”.
Continuavam a mover-se ao som das palmas, mas um certo senso de responsabilidade recaiu sobre a consciência de ambos e decidiram por continuar a caminhar pelas ruas do centro de São Paulo. Precisavam de mais depoimentos, era urgente documentar. Ao chegarem ao Vale do Anhangabaú, avistaram um pequeno aglomerado de pessoas sentadas próximo aos chafarizes e colheram mais informações. Cansados do exaustivo dia, decidiram tomar uma cerveja.
- Vamos ao Salada Recordes, é do lado do bar Drahma.
- Sim, sei onde fica. Vamos.
Deitada em sua cama, Açucena refletia sobre o dia que tivera naquele sábado. Precisava fazer mais um trabalho da faculdade, mas optou por dormir mais algumas horas, dormir ainda lhe parecia uma necessidade humana. Na noite anterior, após deixar Davi próximo ao metrô Santa Cecília, Açucena voltou para sua casa aonde a esperava sua amiga, mais chegada que irmã, com quem dividia apartamento. Suas conversas eram sempre profundas e Açucena as denominava “conversas de autoconhecimento”.
- Hoje fomos no Anhangabaú.
- É. E aí?
- Conversamos com os moradores que estavam ali. Pegamos mais alguns depoimentos, mas o mais interessante foi a conversa que tive com uma das meninas. Ela me contou que estava na rua há pouco tempo e que saiu da casa de sua mãe por causa do namorado que vive na rua. Ela tinha voltado antes, pra casa da mãe dela, mas optou por voltar pra rua.
- E o que ela fazia antes?
- Ela trabalhava em uma boate, disse que é uma dessas do centro. Fugiu de casa com 15 anos de idade, depois de uma crise de transtorno bipolar. Disse que não aguentava mais a repressão do pai e o quanto ele oprimia a vida dela. Acabou em um desses mocós aqui do centro.
- E como ela conheceu esse namorado?
- Sempre nas ruas, mas o crack é recente. Parece que deu certo com este rapaz e ela prefere ser feliz, ainda que nas ruas. To lembrando do Harry, a Masayo também optou por ele em “The Silver Motorcycle”, aquele conto que te falei.
- Lembro, mas ela recebia um cheque todo mês não é?
- Sim, sim. Funcionalismo público exercido por meio dos corpos de outros seres. Enfim, é uma pena que essa moça não vá receber um cheque mensal, mas acredito que se optou por isso, tem seus motivos né, Anne?
- Cada um sabe o preço do papel que tem, e de onde vem. Já disse o Criolo, nega.
- Verdade.
5
“Chão. Chega perto do céu, quando você levanta a cabeça e tira o chapéu”.
Lenine. Sem dúvida a maior referência de Açucena, aquele de nome Tupi e Guaykuru, Jack é brasileiro, Pernambuco, leão do norte, ecoa o ão daqueles que também são coração. Se esta novela, fosse novela, não seria uma novela. Seria algo diferente, quebrado, desestruturado, maior, o coadjuvante seria protagonista e o anti-herói seria o leitor e o narrador não existiria, a realidade seria suficiente. Se esta novela, fosse novela, não existiria. Mas, como não é nada, o caro leitor, também pode escolher como nomear.
Sentou-se no banco em frente à biblioteca da faculdade, esperava por Davi. O vídeo estava finalizado, mas ainda precisava de um nome, fone de ouvido e a música lhe permitindo sensações.
- E aí beleza?
Açucena tirou os fones de ouvido. – Beleza.
- Terminei de editar o vídeo. E já pensei no nome, “Órbita da Repressão”. O que você acha?
- Órbita? Bom nome. Melhor do que o que eu tinha pensado, “A verdade por trás da Especulação Imobiliária”, nada mais clichê.
- É, pensei um pouco para considerar este nome. O que você estava ouvindo? Lenine?
- Lógico.
- Me mostra a melhor música que você tem dele.
- Bom, talvez essa ajude a definir o sentimento que tive com essa experiência toda, posso compartilhar com você.
- Ok. Qual o nome?
- “Isso é só o começo”.
- Como você acha que essas pessoas se sentem?
Ponderando, Açucena respondeu: - Só consigo pensar em um poema belíssimo de Francisco Alvim, inclusive decorei.
- Mesmo? Como é?
DESCARTÁVEL
Vontade de me jogar fora.
- Acabou?
- Sim.
Açucena entregou um dos fones a Davi, que se acomodou esperando que a expressão à qual ela se referira, fizesse jus ao que não conseguia entender. Esta narradora se despede tranquila e certa de que ao se tornar pré-história, a pós-modernidade justificará a falta de nexo deste fim. Enquanto isto, os dois amigos, no banco em frente a sua faculdade, ouvirão a canção sentindo-se expressados.
Isso é só o começo
É só o começo
Isso é só o começo
É só o começo
Aqui chegamos, enfim
A um ponto sem regresso
Ao começo do fim
De um longo e lento processo
Que se apressa a cada ano
Como um progresso insano
Que marcha pro retrocesso
E é só o começo
Estranhos dias vivemos
Dias de eventos extremos
E de excessos em excesso
Mas se com tudo que vemos
Os olhos viram do avesso
Outros eventos veremos
Outros extremos virão
Prepare seu coração
Que isso é só o começo
É só o começo
Isso é só o começo
É só o começo
Aqui chegamos, porém
Num evento diferente
Onde a gente se entretém
Um ao outro, frente a frente
Deixando um pouco ao fundo
O ambiente do mundo
Por esse aqui, entre a gente
É só o começo
Assim nesse clima quente
No espaço e tempo presente
Meu canto eu lanço, não meço
Minha rima eu arremesso
Pra que nada fique intacto
E tudo sinta o impacto
Da ação de cada canção
Preparem-se irmã, irmão
Que isso é só o começo
É só o começo
Isso é só o começo
É só o começo
Isso é só o começo, é
É só o começo
Isso é só o começo
É só o começo
Isso é só o começo
É só o começo
Isso é só o começo, é
É só o começo.